sábado, 9 de março de 2013

Nietzsche: Tudo que se chama amor.

Cupidez, amor - ah! como essas duas palavras têm sons diferentes em nosso coração! Talvez expressem, entretanto, o mesmo instinto batizado duas vezes: a primeira pejorativamente, do ponto de vista daqueles que já possuem, que já têm um instinto de posse levemente formado e que temem portanto pelos seus "bens"; a segunda elogiosamente, do ponto de vista dos insatisfeitos e dos ávidos que encaram esse instinto como "bom". Nosso "amor ao próximo" não é na verdade um desejo imperioso de uma nova posse? E não acontece o mesmo relativamente ao amor à ciência e à verdade? Deixamos pouco a pouco o antigo, do que possuímos seguramente, temos necessidade de estender ainda nossas mãos. A mais bela paisagem, depois que vivemos em face dela durante três meses não nos agrada mais, qualquer margem distante nos atrai com maior intensidade: uma possessão geralmente diminui com o uso. O prazer que tiramos de nós mesmos procura se manter transformando sempre qualquer coisa nova em nós mesmos e precisamente a isto chama-se possuir. Cansar-se de uma possessão é cansar-se de si mesmo. (O sofrimento pode provir do excesso; a necessidade de jogar fora, de dar, pode também receber o nome lisonjeiro de "amor".) Quando vemos alguém sofrendo aproveitamo-nos com agrado essa ocasião que se apresenta de nos apoderarmos dele; assim o faz o homem caridoso, o indivíduo complacente, que também chama de "amor" esse desejo de uma nova posse que despertou em sua alma e tem prazer nisso como diante do apelo de uma nova conquista. Mas no amor de sexo para sexo que se revela mais nitidamente em desejo de posse: aquele que ama quer ser possuidor exclusivo da pessoa que deseja, um poder absoluto tanto sobre seu corpo quanto sobre sua alma, quer ser amado unicamente, instalar-se e reinar em outra alma como o mais alto e desejável. Se considerarmos que isso significa excluir o mundo inteiro do gozo de um bem e de uma felicidade preciosas; se pensarmos que aquele que ama deseja empobrecer e privar os demais concorrentes e tornar-se o dragão de seu tesouro como o mais indiscreto "conquistador", o mais egoísta dos exploradores, se considerarmos que todo o resto do mundo lhe parece indiferente, desbotado, sem valor e que está pronto para fazer qualquer sacrifício, perturbar qualquer ordem estabelecida, relegar a segundo plano tudo quanto lhe interessa, espantamo-nos que essa cupidez bárbara, essa furibunda injustiça do amor sexual, tenha sido glorificada a tal ponto, deificada em todos os períodos da história, pior, que se tenha tirado deste amor a ideia de amor como o oposto do egoísmo, enquanto talvez seja sua expressão mais espontânea. O uso, aqui, deve ter sido criado por aqueles que ainda não possuíam e que desejavam possuir; talvez sempre tenham sido um número excessivo. Os que possuíram muitos e conheceram a saciedade, deixaram vez por outra escapar uma palavra falando de "demônio furioso", como Sófocles, o mais amável e mais amado dos atenienses; mas Eros sempre se ri de tais blasfemos; são seus grandes favoritos. Existe realmente aqui e além na terra uma espécie de prolongamento do amor, no qual o desejo experimentando por dois seres dá lugar a um novo desejo, a uma nova cobiça, a uma sede comum e superior, de um ideal que ultrapassa a ambos: mas quem conhece esse amor? Quem o viveu? Seu nome verdadeiro é amizade.

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